FIDES ET RATIO

 

PAPA JOÃO PAULO II

RESUMO DA ENCÍCLICA FIDES ET RATIO

SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE FÉ E RAZÃO


INTRODUÇÃO


Tanto no Oriente como no Ocidente, é possível entrever um caminho que, ao longo dos séculos, levou a humanidade a encontrar-se progressivamente com a verdade e a confrontar-se com ela. É um caminho que se realizou — nem podia ser de outro modo — no campo da autoconsciência pessoal: quanto mais o homem conhece a realidade e o mundo, tanto mais se conhece a si mesmo na sua unicidade, ao mesmo tempo que nele se torna cada vez mais urgente a questão do sentido das coisas e da sua própria existência.

Variados são os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento da verdade, tornando assim cada vez mais humana a sua existência. De entre eles sobressai a filosofia, cujo contributo específico é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta: constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da humanidade. O termo filosofia significa, segundo a etimologia grega, “amor à sabedoria”. Efetivamente a filosofia nasceu e começou a desenvolver-se quando o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê das coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade pertence à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma propriedade natural da sua razão, embora as respostas, que esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que evidencia a complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.

A capacidade reflexiva própria da alma humana permite elaborar, através da atividade filosófica, uma forma de pensamento rigoroso, e assim construir, com coerência lógica entre as afirmações e coesão orgânica dos conteúdos, um conhecimento sistemático. Graças a tal processo, alcançaram-se, em contextos culturais diversos e em diferentes épocas históricas, resultados que levaram à elaboração de verdadeiros sistemas de pensamento. Historicamente isto gerou muitas vezes a tentação de identificar uma única corrente com o pensamento filosófico inteiro. Mas, nestes casos, é claro que entra em jogo uma certa “soberba filosófica”, que pretende elevar em leitura universal a própria perspectiva e visão imperfeita. Na realidade, cada sistema filosófico, sempre no respeito da sua integridade e livre de qualquer instrumentalização, deve reconhecer a prioridade do pensar filosófico de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.

A Igreja, por sua vez, não pode deixar de apreciar o esforço da razão na obtenção de objetivos que tornem cada vez mais digna a existência pessoal. Na verdade, ela vê, na filosofia, o caminho para conhecer verdades fundamentais relativas à existência do homem. Ao mesmo tempo, considera a filosofia uma ajuda indispensável para aprofundar a compreensão da fé e comunicar a verdade do Evangelho a quantos não a conhecem ainda.

A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação sobre o conhecimento humano. Em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos.

Daí procederam várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças dum estado de quem duvida de tudo em geral. E, mais recentemente, ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado. A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto atual, de desconfiança na verdade. E esta ressalva vale também para certas concepções de vida originárias do Oriente: é que negam à verdade o seu carácter exclusivo, ao partirem do pressuposto de que ela se manifesta de modo igual em doutrinas diversas ou mesmo contraditórias entre si. Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião. Como consequência, surgiram, não só em alguns filósofos mas no homem de hoje em geral, atitudes de desconfiança generalizada quanto aos grandes recursos hábeis para conhecer do ser humano. Com falsa modéstia, contentam-se de verdades parciais e provisórias, deixando de tentar pôr as perguntas radicais sobre o sentido e o fundamento último da vida humana, pessoal e social. Em suma, enfraqueceu a esperança de se poder receber da filosofia respostas definitivas a tais questões.

Credenciada pelo fato de ser depositária da revelação de Jesus Cristo, a Igreja deseja reafirmar a necessidade da reflexão sobre a verdade. Foi por este motivo que decidi dirigir-me a vós, venerados Irmãos no Episcopado, com quem partilho a missão de anunciar “abertamente a verdade” (2 Cor 4, 2), e dirigir-me também aos teólogos e filósofos a quem compete o dever de investigar os diversos aspectos da verdade, e ainda a quantos andam à procura duma resposta, para comunicar algumas reflexões sobre o caminho que conduz à verdadeira sabedoria, a fim de que todo aquele que tiver no coração o amor por ela possa tomar a estrada certa para a alcançar, e nela encontrar repouso para a sua fadiga e também satisfação espiritual.

Tomo esta iniciativa impelido, antes de mais, pela certeza de que os Bispos, como assinala o Concílio Vaticano II, são “testemunhas da verdade divina e católica”. Por isso, testemunhar a verdade é um encargo que nos foi confiado a nós, os Bispos; não podemos renunciar a ele, sem faltar ao ministério que recebemos. Reafirmando a verdade da fé, podemos restituir ao homem de hoje uma genuína confiança nas suas capacidades a ter conhecimento e oferecer à filosofia um estímulo para poder recuperar e promover a sua plena dignidade.

A filosofia, que tem a grande responsabilidade de formar o pensamento e a cultura através do apelo perene à busca da verdade, deve recuperar vigorosamente a sua vocação originária.


A REVELAÇÃO DA SABEDORIA DE DEUS


Na base de toda a reflexão feita pela Igreja, está a consciência de ser depositária duma mensagem, que tem a sua origem no próprio Deus (cf. 2 Cor 4, 1-2). O conhecimento que ela propõe ao homem, não provém de uma reflexão sua, nem sequer da mais alta, mas de ter acolhido na fé a palavra de Deus (cf. 1 Tes 2, 13). Na origem do nosso ser crentes existe um encontro, único no seu género, que assinala a abertura de um mistério escondido durante tantos séculos (cf. 1 Cor 2, 7; Rom 16, 25-26), mas agora revelado: “Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-Se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cf. Ef 1, 9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina”. Trata-se de uma iniciativa completamente gratuita, que parte de Deus e vem ao encontro da humanidade para a salvar. Enquanto fonte de amor, Deus deseja dar-Se a conhecer, e o conhecimento que o homem adquire d'Ele leva à plenitude qualquer outro conhecimento verdadeiro que a sua mente seja capaz de alcançar sobre o sentido da própria existência.

No primeiro Concílio do Vaticano, os Padres tinham sublinhado o carácter sobrenatural da revelação de Deus. A crítica racionalista que então se fazia sentir contra a fé, baseada em teses erradas mas muito difusas, insistia sobre a negação de qualquer conhecimento que não fosse fruto das capacidades naturais da razão. Isto obrigara o Concílio a reafirmar vigorosamente que, além do conhecimento da razão humana, por sua natureza, capaz de chegar ao Criador, existe um conhecimento que é peculiar da fé. Este conhecimento exprime uma verdade que se funda precisamente no fato de Deus que Se revela, e é uma verdade certíssima porque Deus não Se engana nem quer enganar.

Por isso, o Concílio Vaticano I ensina que a verdade alcançada pela via da reflexão filosófica e a verdade da Revelação não se confundem, nem uma torna a outra supérflua: “Existem duas ordens de conhecimento, diversas não apenas pelo seu princípio, mas também pelo objeto. Pelo seu princípio, porque, se num conhecemos pela razão natural, no outro fazêmo-lo por meio da fé divina; pelo objeto, porque, além das verdades que a razão natural pode compreender, é-nos proposto ver os mistérios escondidos em Deus, que só podem ser conhecidos se nos forem revelados do Alto”. A fé, que se fundamenta no testemunho de Deus e conta com a ajuda sobrenatural da graça, pertence efetivamente a uma ordem de conhecimento diversa da do conhecimento filosófico. De fato, este assenta sobre a percepção dos sentidos, sobre a experiência, e move-se apenas com a luz do intelecto. A filosofia e as ciências situam-se na ordem da razão natural, enquanto a fé, iluminada e guiada pelo Espírito, reconhece na mensagem da salvação a “plenitude de graça e de verdade” (cf. Jo 1, 14) que Deus quis revelar na história, de maneira definitiva, por meio do seu Filho Jesus Cristo.

A verdade que Deus confiou ao homem a respeito de Si mesmo e da sua vida insere-se, portanto, no tempo e na história. Sem dúvida, aquela foi pronunciada uma vez por todas no mistério de Jesus de Nazaré. Assim, a história constitui um caminho que o Povo de Deus há-de percorrer inteiramente, de tal modo que a verdade revelada possa exprimir em plenitude os seus conteúdos, graças à ação incessante do Espírito Santo (cf. Jo 16, 13). Ensina-o também a constituição Dei Verbum, quando afirma que “a Igreja, no decurso dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus”.

A encarnação do Filho de Deus permite ver realizada uma síntese definitiva que a mente humana, por si mesma, nem sequer poderia imaginar: o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no fragmento, Deus assume o rosto do homem. Deste modo, a verdade expressa na revelação de Cristo deixou de estar circunscrita a um restrito campo territorial e cultural, abrindo-se a todo o homem e mulher que a queira acolher como palavra definitivamente válida para dar sentido à existência. Agora todos têm acesso ao Pai, em Cristo; de fato, com a sua morte e ressurreição, Ele concedeu-nos a vida divina que o primeiro Adão tinha rejeitado.

O Concílio ensina que, “a Deus que revela, é devida a obediência da fé”. Com esta breve mas densa afirmação, é indicada uma verdade fundamental do cristianismo. Diz-se, em primeiro lugar, que a fé é uma resposta de obediência a Deus. Isto implica que Ele seja reconhecido na sua divindade, transcendência e liberdade suprema. Deus que Se dá a conhecer na autoridade da sua transcendência absoluta, traz consigo também a credibilidade dos conteúdos que revela. Pela fé, o homem presta assentimento a esse testemunho divino. Isto significa que reconhece plena e integralmente a verdade de tudo o que foi revelado, porque é o próprio Deus que o garante.

A verdade da revelação cristã, que se encontra em Jesus de Nazaré, permite a quem quer que seja perceber o “mistério” da própria vida. Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo que respeita a autonomia da criatura e a sua liberdade, obriga-a a abrir-se à transcendência. Aqui, a relação entre liberdade e verdade atinge o seu máximo grau, podendo-se compreender plenamente esta palavra do Senhor: “Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á” (Jo 8,32).

A revelação cristã é a verdadeira estrela de orientação para o homem, que avança por entre os condicionalismos da mentalidade imanentista e os reducionismos duma lógica tecnocrática; é a última possibilidade oferecida por Deus, para reencontrar em plenitude aquele projeto primordial de amor que teve início com a criação. À luz destas considerações, impõe-se uma primeira conclusão: a verdade que a Revelação nos dá a conhecer não é o fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razão. Pelo contrário, aquela apresenta-se com a característica da gratuidade, obriga a pensá-la, e pede para ser acolhida, como expressão de amor. Esta verdade revelada é a presença antecipada na nossa história daquela visão última e definitiva de Deus, que está reservada para quantos acreditam n'Ele ou O procuram de coração sincero. Assim, o fim último da existência pessoal é objeto de estudo quer da filosofia, quer da teologia. Embora com meios e conteúdos diversos, ambas apontam para aquele “caminho da vida” (Sal 1615, 11) que, segundo nos diz a fé, tem o seu termo último de chegada na alegria plena e duradoura da contemplação de Deus Uno e Trino.


CREDO UT INTELLEGAM


O caráter peculiar do texto bíblico reside na convicção de que existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão e o da fé. O mundo e o que nele acontece, assim como a história e as diversas inconstâncias dos fatos da nação são realidades observadas, analisadas e julgadas com os meios próprios da razão, mas sem deixar a fé alheia a este processo. Esta não intervém para humilhar a autonomia da razão, nem para reduzir o seu espaço de ação, mas apenas para fazer compreender ao homem que, em tais acontecimentos, se torna visível e atua o Deus de Israel. Assim, não é possível conhecer profundamente o mundo e os fatos da história, sem ao mesmo tempo professar a fé em Deus que neles atua. A fé aperfeiçoa o olhar interior, abrindo a alma para descobrir, no curso dos acontecimentos, a presença operante da Providência.

Encontramos, no livro da Sabedoria, alguns textos importantes, que iluminam ainda melhor este assunto. Lá, o autor sagrado fala de Deus que Se dá a conhecer também através da natureza. Para os antigos, o estudo das ciências naturais coincidia, em grande parte, com o saber filosófico. Depois de ter afirmado que o homem, com a sua inteligência, é capaz de “conhecer a constituição do universo e a força dos elementos (...), o ciclo dos anos e a posição das astros, a natureza dos animais mansos e os instintos dos animais ferozes” (Sab 7, 17.19-20), por outras palavras, que o homem é capaz de filosofar, o texto sagrado dá um passo em frente muito significativo. Retomando o pensamento da filosofia grega, à qual parece referir-se neste contexto, o autor afirma que, raciocinando precisamente sobre a natureza, pode-se chegar ao Criador: “Pela grandeza e beleza das criaturas, pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor” (Sab 13, 5). Reconhece-se, assim, um primeiro nível da revelação divina, constituído pelo maravilhoso “livro da natureza”; lendo-o com os meios próprios da razão humana, pode-se chegar ao conhecimento do Criador. Se o homem, com a sua inteligência, não chega a reconhecer Deus como criador de tudo, isso fica-se a dever não tanto à falta de um meio adequado, como sobretudo ao obstáculo interposto pela sua vontade livre e pelo seu pecado.

Nesta perspectiva, a razão é valorizada, mas não superexaltada. O que ela alcança pode ser verdade, mas só adquire pleno significado se o seu conteúdo for situado num horizonte mais amplo, o da fé: “O Senhor é quem dirige os passos do homem; como poderá o homem compreender o seu próprio destino?” (Prov 20, 24). A fé, segundo o Antigo Testamento, liberta a razão, na medida em que lhe permite alcançar coerentemente o seu objeto de conhecimento e situá-lo naquela ordem suprema onde tudo adquire sentido. Em resumo, pela razão o homem alcança a verdade, porque, iluminado pela fé, descobre o sentido profundo de tudo e, particularmente, da própria existência. Justamente, pois, o autor sagrado coloca o início do verdadeiro conhecimento no temor de Deus: “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Prov 1, 7; cf. Sir 1, 14).


INTELLEGO UT CREDAM


Há que reconhecer que a busca da verdade nem sempre se desenrola com a referida transparência e coerência de raciocínio. Muitas vezes, as limitações naturais da razão e a inconstância do coração ofuscam e desviam a pesquisa pessoal. Outros interesses de vária ordem podem sobrepor-se à verdade. Acontece também que o próprio homem a evite, quando começa a entrevê-la, porque teme as suas exigências. Apesar disto, mesmo quando a evita, é sempre a verdade que preside à sua existência. Com efeito, nunca poderia fundar a sua vida sobre a dúvida, a incerteza ou a mentira; tal existência estaria constantemente ameaçada pelo medo e a angústia. Assim, pode-se definir o homem como aquele que procura a verdade.

O mártir é a testemunha mais genuína da verdade da existência. Ele sabe que, no seu encontro com Jesus Cristo, alcançou a verdade a respeito da sua vida, e nada nem ninguém poderá jamais arrancar-lhe esta certeza. Nem o sofrimento, nem a morte violenta poderão fazê-lo retroceder da adesão à verdade que descobriu no encontro com Cristo. Por isso mesmo é que, até agora, o testemunho dos mártires atrai, gera consenso, é escutado e seguido. Esta é a razão pela qual se tem confiança na sua palavra: descobre-se neles a evidência dum amor que não precisa de longas demonstrações para ser convincente, porque fala daquilo que cada um, no mais fundo de si mesmo, já sente como

verdadeiro e que há tanto tempo procurava. Em resumo, o mártir provoca em nós uma profunda confiança, porque diz aquilo que já sentimos e torna evidente aquilo que nós mesmos queríamos ter a força de dizer.

Deste modo, foi possível completar progressivamente os dados do problema. O homem, por sua natureza, procura a verdade. Esta busca não se destina apenas à conquista de verdades parciais, físicas ou científicas; não busca só o verdadeiro bem em cada um das suas decisões. Mas a sua pesquisa aponta para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se, por conseguinte, de algo que não pode desembocar senão no absoluto.

Graças às capacidades de que está dotado o seu pensamento, o homem pode encontrar e reconhecer uma tal verdade. Sendo esta vital e essencial para a sua existência, chega-se a ela não só por via racional, mas também através de um abandono confiável a outras pessoas que possam garantir a certeza e autenticidade da verdade. A capacidade e a decisão de confiar o próprio ser e existência a outra pessoa constituem, sem dúvida, um dos atos antropologicamente mais significativos e expressivos.

Do que ficou dito conclui-se que o homem se encontra num caminho de busca, humanamente infinito: busca da verdade e busca duma pessoa em quem poder confiar. A fé cristã vem em sua ajuda, dando-lhe a possibilidade concreta de ver realizado o objetivo dessa busca. De fato, superando o nível da simples crença, ela introduz o homem naquela ordem da graça que lhe consente participar no mistério de Cristo, onde lhe é oferecido o conhecimento verdadeiro e coerente de Deus Uno e Trino. Deste modo, em Jesus Cristo, que é a Verdade, a fé reconhece o apelo último dirigido à humanidade, para que possa tornar realidade o que experimenta como desejo e nostalgia.

Esta verdade, que Deus nos revela em Jesus Cristo, não está em contraste com as verdades que se alcançam filosofando. Pelo contrário, as duas ordens de conhecimento conduzem à verdade na sua plenitude. A unidade da verdade já é um princípio admitido fundamental da razão humana, expresso no princípio de não-contradição. A Revelação dá a certeza desta unidade, ao mostrar que Deus criador é também o Deus da história da salvação. Deus que fundamenta e garante o carácter inteligível e racional da ordem natural das coisas, sobre o qual os cientistas se apoiam confiadamente, é o mesmo que Se revela como Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Esta unidade da verdade, natural e revelada, encontra a sua identificação viva e pessoal em Cristo, como recorda o apóstolo Paulo: “A verdade que existe em Jesus” (Ef 4, 21; cf. Col 1, 15-20). Ele é a Palavra eterna, na qual tudo foi criado, e ao mesmo tempo é a Palavra encarnada que, com toda a sua pessoa, revela o Pai (cf. Jo 1, 14.18). Aquilo que a razão humana procura “sem o conhecer” (cf. Act 17, 23), só pode ser encontrado por meio de Cristo: de fato, o que n'Ele se revela é a “verdade plena” (cf. Jo 1, 14-16) de todo o ser que, n'Ele e por Ele, foi criado e, por isso mesmo, n'Ele encontra a sua realização (cf. Col 1, 17).

Tendo estas considerações gerais como pano de fundo, é necessário agora examinar, de maneira mais direta, a relação entre a verdade revelada e a filosofia. Tal relação requer uma dupla consideração, visto que a verdade que nos vem da Revelação tem de ser, simultaneamente, compreendida pela luz da razão. Só neste duplo significado é que será possível especificar a justa relação da verdade revelada com o saber filosófico.


A RELAÇÃO ENTRE A FÉ E A RAZÃO


Neste longo caminho, ocupa um lugar absolutamente especial S. Tomás, não só pelo conteúdo da sua doutrina, mas também pelo diálogo que soube instaurar com o pensamento árabe e hebreu do seu tempo. Numa época em que os pensadores cristãos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia antiga, e mais diretamente da filosofia aristotélica, ele teve o grande mérito de colocar em primeiro lugar a harmonia que existe entre a razão e a fé. A luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus: argumentava ele; por isso, não se podem contradizer entre si.

Indo mais longe, S. Tomás reconhece que a natureza, objeto próprio da filosofia, pode contribuir para a compreensão da revelação divina. Deste modo, a fé não teme a razão, mas solicita-a e confia nela. Como a graça supõe a natureza e leva-a à perfeição, assim também a fé supõe e aperfeiçoa a razão. A razão iluminada pela fé, fica liberta das fraquezas e limitações causadas pela desobediência do pecado, e recebe a força necessária para elevar-se até ao conhecimento do mistério de Deus Uno e Trino.


INTERVENÇÕES DO MAGISTÉRIO EM MATÉRIA FILOSÓFICA


Não é função nem competência do Magistério intervir para completar as lacunas dum discurso filosófico carente. Mas, já é sua obrigação reagir, de forma clara e vigorosa, quando teses filosóficas discutíveis ameaçam a reta compreensão do dado revelado e quando se difundem teorias falsas e rígidas que semeiam erros graves, perturbando a simplicidade e a pureza da fé do povo de Deus.

Por conseguinte, o Magistério eclesiástico pode, e deve, exercer com autoridade, à luz da fé, o discernimento crítico sobre filosofias e afirmações que contradigam a doutrina cristã. Ao Magistério compete, antes de mais, indicar os pressupostos e as conclusões filosóficas que são incompatíveis com a verdade revelada, formulando assim as exigências que, do ponto de vista da fé, se impõem à filosofia.

Em todo o caso, tal discernimento não deve ser visto primariamente de forma negativa, como se a intenção do Magistério fosse eliminar ou reduzir qualquer possibilidade de mediação; ao contrário, as suas intervenções visam em primeiro lugar suscitar, promover e encorajar o pensamento filosófico. Os filósofos são, aliás, os primeiros a compreender a exigência de autocrítica, de correção de eventuais erros, e a necessidade de ultrapassar os limites demasiado estreitos em que a sua reflexão foi concebida. De modo particular, deve-se considerar que a verdade é uma só, embora as suas expressões acusem os vestígios da história e sejam, além disso, obra duma razão humana ferida e enfraquecida pelo pecado.

Se a palavra do Magistério se fez ouvir mais frequentemente a partir da segunda metade do século passado, foi porque, naquele período, numerosos católicos sentiram o dever de contrapor uma filosofia própria às várias correntes do pensamento moderno. Daqui resultou, para o Magistério da Igreja, a obrigação de vigiar a fim de que tais filosofias não degenerassem, por sua vez, em formas erróneas e negativas. Acabaram assim censurados os dois extremos: dum lado, o fideísmo e o tradicionalismo radical, pela sua falta de confiança nas capacidades naturais da razão; e, do outro, o racionalismo e o ontologismo, porque atribuíam à razão natural aquilo que apenas se pode conhecer pela luz da fé.

Mais do que teses filosóficas isoladas, as tomadas de posição do Magistério ocuparam-se da necessidade do conhecimento racional — e por conseguinte, em última análise, do conhecimento filosófico — para a compreensão da fé. O Concílio Vaticano I, sintetizando e confirmando solenemente os ensinamentos que o Magistério pontifício tinha proposto aos fiéis de maneira ordinária e constante, pôs em evidência como são inseparáveis e ao mesmo tempo irredutíveis entre si o conhecimento natural de Deus e a Revelação, a razão e a fé. É que era preciso afirmar, contra qualquer forma de racionalismo, a distinção entre os mistérios da fé e as conclusões filosóficas, e ainda a transcendência e precedência daqueles sobre estas; por outro lado, contra as tentações fideístas, tornava-se necessário comprovar a unidade da verdade e também o contributo positivo que o conhecimento racional pode, e deve, dar para o conhecimento da fé: “Mas, embora a fé esteja acima da razão, não poderá existir nunca uma verdadeira divergência entre fé e razão, porque o mesmo Deus que revela os mistérios e comunica a fé, foi quem colocou também, no espírito humano, a luz da razão. E Deus não poderia negar-Se a Si mesmo, pondo a verdade em contradição com a verdade”.

O Magistério, porém, não se limitou a pôr em destaque os erros e desvios das doutrinas filosóficas. Mas, com igual cuidado, quis confirmar os princípios fundamentais para uma genuína renovação do pensamento filosófico, indicando mesmo percursos concretos a seguir. Nesta linha, o Papa Leão XIII, com a carta encíclica Æterni Patris, realizou um passo de alcance verdadeiramente histórico na vida da Igreja. Efetivamente aquela constitui, até ao dia de hoje, o único documento pontifício dedicado, a esse nível, inteiramente à filosofia. O grande Pontífice retomou e desenvolveu a doutrina do Concílio Vaticano I sobre a relação entre fé e razão, mostrando como o pensamento filosófico é um contributo fundamental para a fé e para a ciência teológica. Passado mais de um século, muitas indicações, lá contidas, nada perderam do seu interesse tanto do ponto de vista prático como pedagógico; a primeira de todas é a que diz respeito ao valor incomparável da filosofia de S. Tomás. A reposição do pensamento do Doutor Angélico era vista pelo Papa Leão XIII como a melhor estrada para se recuperar um uso da filosofia conforme às exigências da fé. S. Tomás, escrevia ele, “ao mesmo tempo que, como é devido, distingue perfeitamente a fé da razão, une-as a ambas com laços de amizade recíproca: conserva os direitos próprios de cada uma e salvaguarda a sua dignidade”.


INTERAÇÃO DA TEOLOGIA COM A FILOSOFIA


Uma cultura nunca pode servir de critério de juízo e, menos ainda, de critério último de verdade a respeito da revelação de Deus. O Evangelho não é contrário a esta ou àquela cultura, como se quisesse, ao encontrar-se com ela, privá-la daquilo que lhe pertence, e a obrigasse a assumir formas extrínsecas que lhe são estranhas. Pelo contrário, o anúncio que o crente leva ao mundo e às culturas é uma forma real de libertação de toda a desordem introduzida pelo pecado e, simultaneamente, uma chamada à verdade plena. Neste encontro, as culturas não são privadas de nada, antes são estimuladas a abrirem-se à novidade da verdade evangélica, de que recebem impulso para novos progressos.

O fato da missão evangelizadora ter encontrado em primeiro lugar no seu caminho a filosofia grega, não constitui de forma alguma impedimento para outros relacionamentos. Hoje, à medida que o Evangelho entra em contato com áreas culturais que estiveram até agora fora do campo de irradiação do cristianismo, novas tarefas se abrem à inculturação. Colocam-se à nossa geração problemas análogos aos que a Igreja teve de enfrentar nos primeiros séculos.

Compete aos cristãos de hoje, sobretudo aos da Índia, a tarefa de extrair deste rico património os elementos compatíveis com a sua fé, para se obter um enriquecimento do pensamento cristão. Nesta obra de discernimento, que tem a sua fonte de inspiração na declaração conciliar Nostra aetate, deverão ter em consideração um certo número de critérios. O primeiro é a universalidade do espírito humano, cujas exigências fundamentais são idênticas nas mais distintas culturas. O segundo, derivado do anterior, consiste no seguinte: quando a Igreja entra em contato com grandes culturas que nunca tinha encontrado antes, não pode pôr de parte o que adquiriu pela inculturação no pensamento greco-latino. Rejeitar uma tal herança seria contrariar o desígnio providencial de Deus, que conduz a sua Igreja pelos caminhos do tempo e da história. Aliás, este critério é válido para a Igreja de todos os tempos — também para a Igreja de amanhã, que se sentirá enriquecida com as aquisições resultantes do encontro em nossos dias com as culturas orientais, e desta herança há-de tirar, por sua vez, indicações novas para entrar frutuosamente em diálogo com as culturas que a humanidade fizer florir no seu caminho rumo ao futuro. Em terceiro lugar, há-de precaver-se por não confundir a legítima reivindicação de especificidade e originalidade do pensamento indiano, com a ideia de que uma tradição cultural deve enclausurar-se na sua diferença e afirmar-se pela sua oposição às outras tradições — ideia essa que seria contrária precisamente à natureza do espírito humano.

O que fica dito para a Índia, vale também para a herança das grandes culturas da China, do Japão e demais países da Ásia, bem como das riquezas das culturas tradicionais da África, transmitidas sobretudo por via oral.

À luz destas considerações, a justa relação que se deve estabelecer entre a teologia e a filosofia há-de ser pautada por uma reciprocidade circular. Quanto à teologia, o seu ponto de partida e fonte primeira terá de ser sempre a palavra de Deus revelada na história, ao passo que o objetivo final só poderá ser uma compreensão cada vez mais profunda dessa mesma palavra por parte das sucessivas gerações. Visto que a palavra de Deus é Verdade, uma melhor compreensão dela só tem a beneficiar com a busca humana da verdade, ou seja, o filosofar, no respeito das leis que lhe são próprias.

Se o teólogo se recusasse a utilizar a filosofia, arriscar-se-ia a fazer filosofia sem o saber e a fechar-se em estruturas de pensamento pouco íntegras à compreensão da fé. Se o filósofo, por sua vez, excluísse todo o contato com a teologia, ver-se-ia na obrigação de apoderar-se por conta própria dos conteúdos da fé cristã, como aconteceu com alguns filósofos modernos. Tanto num caso como noutro, surgiria o perigo da destruição dos princípios básicos de autonomia que cada ciência justamente quer ver garantidos.

O estádio da filosofia agora considerado, devido às implicações que comporta na compreensão da Revelação, está, como acontece com a teologia, mais diretamente colocado sob a autoridade do Magistério e do seu discernimento. Das verdades de fé derivam, efetivamente, determinadas exigências que a filosofia deve respeitar, quando entra em relação com a teologia.

Em resumo, a revelação cristã torna-se o verdadeiro ponto de união e confronto entre o pensar filosófico e o teológico, no seu recíproco intercâmbio. Espera-se, pois, que teólogos e filósofos se deixem guiar unicamente pela autoridade da verdade, para que seja elaborada uma filosofia de harmonia com a palavra de Deus. Esta filosofia será o terreno de encontro entre as culturas e a fé cristã, o espaço de entendimento entre crentes e não crentes. Ajudará os crentes a convencerem-se mais intimamente de que a profundidade e a autenticidade da fé saem favorecidas quando esta se une ao pensamento e não renuncia a ele.


EXIGÊNCIAS E TAREFAS ATUAIS


A Sagrada Escritura contém, de forma explícita ou implícita, toda uma série de elementos que permite alcançar uma perspectiva de notável densidade filosófica acerca do homem e do mundo. Os cristãos foram gradualmente tomando consciência da riqueza contida naquelas páginas sagradas. Delas se conclui que a realidade que experimentamos, não é o absoluto: não é incriada, nem se autogerou. Só Deus é o Absoluto.

Também o problema do mal moral — a forma mais trágica do mal — é considerado na Bíblia, dizendo-nos que este não pode ser reduzido a uma mera deficiência devida à matéria, mas é uma ferida que provém de uma manifestação desordenada da liberdade humana. Finalmente, a palavra de Deus apresenta o problema do sentido da existência e revela a resposta para o mesmo, encaminhando o homem para Jesus Cristo, o Verbo de Deus encarnado, que realiza em plenitude a existência humana. Poder-se-iam ainda explicitar outros aspectos da leitura do texto sagrado; de qualquer modo, o que sobressai é a rejeição de toda a forma de relativismo, materialismo, panteísmo.

A convicção fundamental desta “filosofia” presente na Bíblia é que a vida humana e o mundo têm um sentido e caminham para a sua plenitude, que se verifica em Jesus Cristo. O mistério da Encarnação permanecerá sempre o centro de referência para se poder compreender o enigma da existência humana, do mundo criado, e mesmo de Deus. Com efeito, torna-se inteligível a essência íntima de Deus e do homem: no mistério do Verbo encarnado, são salvaguardadas a natureza divina e a natureza humana, com sua respectiva autonomia, e simultaneamente manifesta-se aquele vínculo único que as coloca em mútuo relacionamento, sem confusão.

A palavra de Deus revela o fim último do homem, e dá um sentido universal à sua ação no mundo. Por isso, ela convida a filosofia a empenhar-se na busca do fundamento natural desse sentido, que é a religiosidade constitutiva de cada pessoa. Uma filosofia que quisesse negar a possibilidade de um sentido último e universal, seria não apenas imprópria, mas errónea.

Uma filosofia, radicalmente fenomenista ou relativista, revelar-se-ia inadequada para ajudar no aprofundamento da riqueza contida na palavra de Deus.

A insistência sobre a necessidade duma estreita relação de continuidade entre a reflexão filosófica atual e a reflexão elaborada na tradição cristã visa prevenir do perigo que se esconde em algumas correntes de pensamento, hoje particularmente difusas.

Enquanto compreensão da Revelação, a teologia, nas sucessivas épocas históricas, sempre sentiu como próprio dever escutar as solicitações das várias culturas, para permeá-las depois, através duma coerente conceptualização, com o conteúdo da fé.

Mas, por outro lado, a teologia deve manter o olhar fixo sobre a verdade última que lhe foi

confiada por meio da Revelação, não se contentando nem se detendo em etapas intermédias. O teólogo recorde-se de que o seu trabalho corresponde “ao dinamismo interior próprio da fé” e que o objeto específico da sua indagação é “a Verdade, o Deus vivo e o seu desígnio de salvação revelado em Jesus Cristo”. Esta tarefa, que diz respeito em primeiro lugar à teologia, interpela também a filosofia. De fato, a quantidade imensa de problemas, que hoje aparece, requer um trabalho comum, embora desenvolvido com metodologias diversas, para que a verdade possa novamente ser conhecida e anunciada. A Verdade, que é Cristo, impõe-se como autoridade universal que rege, estimula e faz crescer tanto a teologia como a filosofia.

O fato de acreditar na possibilidade de se conhecer uma verdade universalmente válida não é de forma alguma fonte de intolerância; pelo contrário, é condição necessária para um diálogo sincero e autêntico entre as pessoas. Só com esta condição será possível superar as divisões e percorrer juntos o caminho que conduz à verdade total, seguindo por sendas que só Espírito do Senhor ressuscitado conhece.

O objetivo fundamental, que a teologia persegue, é apresentar a compreensão da Revelação e o conteúdo da fé. Assim, o verdadeiro centro da sua reflexão há-de ser a contemplação do próprio mistério de Deus Uno e Trino. E a este chega-se refletindo sobre o mistério da encarnação do Filho de Deus: sobre o fato de Ele Se fazer homem e, depois, caminhar até à paixão e à morte, mistério este que desembocará na sua gloriosa ressurreição e ascensão à direita do Pai, donde enviará o Espírito de verdade para constituir e animar a sua Igreja.

Com a sua linguagem histórica e limitada, o homem pode exprimir verdades que transcendem o fenómeno linguístico. De fato, a verdade nunca pode estar limitada a um tempo, nem a uma cultura; é conhecida na história, mas supera a própria história.

A reflexão filosófica muito pode contribuir para esclarecer a relação entre verdade e vida, entre acontecimento e verdade doutrinal, e sobretudo a relação entre verdade transcendente e linguagem humanamente inteligível. A reciprocidade que se cria entre as disciplinas teológicas e os resultados alcançados pelas diversas correntes filosóficas, pode traduzir-se numa real fecundidade para a comunicação da fé e para uma sua compreensão mais profunda.


CONCLUSÃO


É óbvia a importância que o pensamento filosófico tem no progresso das culturas e na orientação dos comportamentos pessoais e sociais. Embora isso nem sempre se note de forma explícita, ele exerce também uma grande influência sobre a teologia e suas diversas disciplinas. Por estes motivos, considerei justo e necessário sublinhar o valor que a filosofia tem para a compreensão da fé, e as limitações em que aquela se vê, quando esquece ou rejeita as verdades da Revelação. De fato, a Igreja continua profundamente convencida de que fé e razão “se ajudam mutuamente”, exercendo, uma em prol da outra, a função tanto de discernimento crítico e purificador, como de estímulo para progredir na investigação e no aprofundamento.

Com tal insistência sobre a importância e as autênticas dimensões do pensamento filosófico, a Igreja promove a defesa da dignidade humana e, simultaneamente, o anúncio da mensagem evangélica. Ora, para estas tarefas, não existe, hoje, preparação mais urgente do que esta: levar os homens à descoberta da sua capacidade de conhecer a verdade e do seu anseio pelo sentido último e definitivo da existência. À luz destas exigências profundas, inscritas por Deus na natureza humana, aparece mais claro também o significado humano e humanizante da palavra de Deus. Graças à mediação de uma filosofia que se tornou também verdadeira sabedoria, o homem contemporâneo chegará a reconhecer que será tanto mais homem quanto mais se abrir a Cristo, acreditando no Evangelho.

A estrita conexão entre a sabedoria teológica e o saber filosófico é uma das riquezas mais originais da tradição cristã no aprofundamento da verdade revelada.

A todos peço para se debruçarem profundamente sobre o homem, que Cristo salvou no mistério do seu amor, e sobre a sua busca constante de verdade e de sentido. Iludindo-o, vários sistemas filosóficos convenceram-no de que ele é senhor absoluto de si mesmo, que pode decidir autonomamente sobre o seu destino e o seu futuro, confiando apenas em si próprio e nas suas forças. Ora, esta nunca poderá ser a grandeza do homem. Para a sua realização, será determinante apenas a opção de viver na verdade, construindo a própria casa à sombra da Sabedoria e nela habitando. Só neste horizonte da verdade poderá compreender, com toda a clareza, a sua liberdade e o seu chamamento ao amor e ao conhecimento de Deus como suprema realização de si mesmo.

Por último, o meu pensamento dirige-se para Aquela que a oração da Igreja invoca como Sede da Sabedoria. A sua vida é uma verdadeira parábola, capaz de iluminar a reflexão que desenvolvi. De fato, pode-se entrever uma profunda analogia entre a vocação da bem-aventurada Virgem Maria e a vocação da filosofia genuína. Como a Virgem foi chamada a oferecer toda a sua humanidade e feminilidade para que o Verbo de Deus pudesse encarnar e fazer-Se um de nós, também a filosofia é chamada a dar o seu contributo racional e crítico para que a teologia, enquanto compreensão da fé, seja fecunda e eficaz. E como Maria, ao prestar o seu consentimento ao anúncio de Gabriel, nada perdeu da sua verdadeira humanidade e liberdade, assim também o pensamento filosófico, quando acolhe a interpelação que recebe da verdade do Evangelho, nada perde da sua autonomia, antes vê toda a sua indagação elevada à mais alta realização.