DIVES IN MISERICORDIA

 


PAPA JOÃO PAULO II


RESUMO DA ENCÍCLICA DIVES IN MISERICORDIA

SOBRE A MISERICÓRDIA DIVINA


QUEM ME VÊ, VÊ O PAI (CF. JO 14, 9)


Deus, que é rico em misericórdia, movido pela imensa caridade com que nos amou, restituiu-nos à vida juntamente com Cristo, quando estávamos mortos pelos nossos pecados”.

Cristo confere a toda a tradição do Antigo Testamento quanto à misericórdia divina sentido definitivo. Não somente fala dela e a explica com o uso de comparações e parábolas, mas sobretudo Ele próprio encarna-a e personifica-a. Ele próprio é, em certo sentido, a misericórdia.


MENSAGEM MESSIÂNICA


Jesus revelou, sobretudo com o seu estilo de vida e com as suas ações, como está presente o amor no mundo em que vivemos, amor operante, amor que se dirige ao homem e abraça tudo quanto constitui a sua humanidade. Precisamente o modo e o espaço em que se manifesta o amor são chamados na linguagem bíblica “misericórdia”.


A MISERICÓRDIA NO ANTIGO TESTAMENTO


Israel foi o povo da aliança com Deus, aliança que muitas vezes violou. Quando tomava consciência da própria infidelidade apelava para a misericórdia. E ao longo da história de Israel não faltaram Profetas e outros homens que despertavam tal consciência.

É significativo o fato de os Profetas na sua pregação apresentarem a misericórdia, a qual muitas vezes se referem por causa dos pecados do povo, em ligação com a forte imagem do amor da parte de Deus. O Senhor ama Israel com amor de singular eleição, semelhante ao amor de um esposo; e por isso perdoa as suas culpas e até as infidelidades e traições. Ao encontrar-se perante a penitência, a conversão autêntica do povo, restabelece-o novamente na graça. Na pregação dos Profetas, a misericórdia significa a especial força do amor, que prevalece sobre o pecado e sobre a infidelidade do povo eleito.

O Senhor revelou a sua misericórdia tanto nas obras como nas palavras, desde os primórdios do povo que escolheu para si. No decurso da sua história, este povo, quer em momentos de desgraça, quer ao tomar consciência do próprio pecado, entregou-se continuamente com confiança ao Deus das misericórdias. Na misericórdia do Senhor para com os seus manifestam-se todo o colorido do amor: Ele é para eles Pai, dado que Israel é seu filho primogênito; Ele é também o esposo daquela a quem o Profeta anuncia um nome novo: “bem-amada”, porque usará de misericórdia para com ela.

De tudo isto se deduz que a misericórdia faz parte não somente da noção de Deus, mas caracteriza também a vida de todo o povo de Israel e de cada um dos seus filhos e filhas: é a essência da intimidade com o seu Senhor, a essência do seu diálogo com Ele. Precisamente sob este aspecto, a misericórdia é apresentada em cada um dos Livros do Antigo Testamento com grande riqueza de expressões. Seria difícil, talvez, procurar nestes livros resposta meramente teórica à pergunta: o que é a misericórdia em si mesma. Contudo, a própria terminologia que neles é usada pode dizer-nos muitíssimo a tal respeito.

O Antigo Testamento proclama a misericórdia do Senhor mediante numerosos termos com significados afins. Estes termos são diferenciados no seu conteúdo particular, mas tendem a convergir, se assim se pode dizer, de vários pontos de vista para um único conteúdo fundamental, a fim de exprimir a riqueza sublime da misericórdia e, ao mesmo tempo, para aproximá-la do homem sob aspectos diversos. O Antigo Testamento encoraja os homens desventurados, sobretudo os que estão oprimidos pelo pecado a fazerem apelo à misericórdia e permite-lhes contar com ela.

Ainda no Antigo Testamento se ensina que, embora a justiça no homem, seja autêntica virtude e em Deus signifique perfeição superior, contudo o amor é “maior” do que a justiça. O amor condiciona, por assim dizer, a justiça; e, em última análise, a justiça serve a caridade. O primado e a superioridade do amor em relação à justiça manifestam-se precisamente através da misericórdia. A misericórdia difere da justiça, mas não se lhe opõe, se admitirmos na história do homem a presença de Deus, o qual já como Criador se ligou com particular amor às suas criaturas.


A PARÁBOLA DO FILHO PRÓDIGO


Na parábola do filho pródigo não é usado, nem uma vez sequer, o termo “justiça”, assim como também não é usado no texto original, o termo “misericórdia”. Contudo, a relação da justiça com o amor que se manifesta como misericórdia aparece profundamente acentuada no conteúdo desta parábola evangélica. Torna-se claro que o amor se transforma em misericórdia quando é preciso ir além da norma exata da justiça: norma precisa mas, por vezes, demasiado rigorosa.

A misericórdia apresentada por Cristo na parábola do filho pródigo tem a característica interior do amor, que no Novo Testamento é chamado “agape”. Este amor é capaz de debruçar-se sobre todos os filhos pródigos, sobre qualquer miséria humana e, especialmente, sobre toda miséria moral, sobre o pecado. Quando isto acontece, aquele que é objeto da misericórdia não se sente humilhado, mas como que reencontrado e “revalorizado”. O pai manifesta-lhe alegria, antes de mais por ele ter sido “reencontrado” e, por ter “voltado à vida”. Esta alegria indica um bem que não foi destruído: o filho, embora pródigo, não deixa de ser realmente filho de seu pai. Indica ainda um bem reencontrado: no caso do filho pródigo, o regresso à verdade sobre si próprio.

A parábola do filho pródigo exprime, de maneira simples mas profunda, a realidade da conversão, que é a mais concreta expressão da obra do amor e da presença da misericórdia no mundo humano. O verdadeiro significado da misericórdia não consiste apenas no olhar, por mais penetrante e mais cheio de compaixão que seja, com que se encara o mal moral, físico ou material. A misericórdia manifesta-se com a sua fisionomia característica quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal existentes no mundo e no homem.

Desta mesma maneira entendiam e praticavam a misericórdia os discípulos e seguidores de Cristo. A misericórdia nunca cessou de se manifestar nos seus corações e nas suas obras, como prova particularmente criadora do amor, que não se deixa “vencer pelo mal”, mas vence “o mal com o bem”. É preciso que o rosto genuíno da misericórdia seja sempre descoberto de maneira nova. Apesar de vários preconceitos, a misericórdia apresenta-se como particularmente necessária nos nossos tempos.


O MISTÉRIO PASCAL


É precisamente a Redenção a última e definitiva revelação da santidade de Deus, que é a plenitude absoluta da perfeição: plenitude da justiça e do amor, pois a justiça funda-se no amor, dele provém e para ele tende. Na paixão e morte de Cristo manifesta-se a justiça absoluta, porque Cristo sofre a paixão e a cruz por causa dos pecados da humanidade. Dá-se na verdade a “superabundância” da justiça, porque os pecados do homem são “compensados” pelo sacrifício do Homem Deus. Esta justiça, que é verdadeiramente justiça “à medida” de Deus, nasce toda do amor, do amor do Pai e do Filho, e frutifica inteiramente no amor. Deste modo, Redenção traz em si a revelação da misericórdia na sua plenitude.

O mistério pascal é o ponto culminante da revelação e atuação da misericórdia, capaz de justificar o homem, e de restabelecer a justiça como realização do desígnio salvífico que Deus, desde o princípio, tinha querido realizar no homem e, por meio do homem, no mundo; Cristo, ao sofrer, interpela todo e cada homem e não apenas o homem crente.

No caminho da eterna eleição do homem para a dignidade de filho adotivo de Deus, ergue-se na história a cruz de Cristo, Filho unigênito, que, como “Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro” veio para dar o último testemunho da admirável aliança de Deus com a humanidade, de Deus com o homem: com todos e com cada um dos homens. Esta aliança tão antiga como o homem é igualmente nova e definitiva aliança; ficou estabelecida ali, no Calvário, e não é limitada a um único povo, o de Israel, mas aberta a todos e a cada um.

Crer no Filho crucificado significa “ver o Pai” significa crer que o amor está presente no mundo e que o amor é mais forte do que toda a espécie de mal em que o homem, a humanidade e o mundo estão envolvidos. Crer neste amor significa acreditar na misericórdia. Esta é, de fato, a dimensão indispensável do amor, é como que o seu segundo nome e, ao mesmo tempo, é o modo específico da sua revelação e atuação perante a realidade do mal que existe no mundo, que assedia e atinge o homem, que se insinua mesmo no seu coração e o “pode fazer perecer, na Geena”.

A Cruz de Cristo, na qual o Filho consubstancial ao Pai presta plena justiça a Deus, é também revelação radical da misericórdia, ou seja, do amor que se opõe àquilo que constitui a própria raiz do mal na história do homem: se opõe ao pecado e à morte. Cristo pascal é a encarnação definitiva da misericórdia, o seu sinal vivo: histórico salvífico e, simultaneamente, escatológico.


A MISERICÓRDIA DE DEUS NA MISSÃO DA IGREJA


Porque existe o pecado no mundo, neste mundo que “Deus amou tanto ... que lhe deu o seu Filho unigênito”, Deus que “é amor” não se pode revelar de outro modo a não ser como misericórdia, a qual corresponde não somente à verdade mais profunda daquele amor que Deus é, mas ainda a toda a verdade interior do homem e do mundo, sua pátria temporária.

A misericórdia em si mesma, como perfeição de Deus infinito é também infinita. Infinita, portanto, e inesgotável é a prontidão do Pai em acolher os filhos pródigos que voltam à sua casa. São infinitas também a prontidão e a força do perdão que brotam continuamente do admirável valor do Sacrifício do Filho. Nenhum pecado humano prevalece sobre esta força e nem sequer a limita. Da parte do homem pode limitá-la somente a falta de boa vontade, a falta de prontidão na conversão e na penitência, isto é, o permanecer na obstinação, que está em oposição com a graça e a verdade, especialmente diante do testemunho da cruz e da ressurreição de Cristo.

É por isso mesmo que a Igreja professa e proclama a conversão. A conversão a Deus consiste sempre na descoberta da sua misericórdia, isto é, do amor que é “paciente e benigno” como o é o Criador e Pai; amor ao qual “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” é fiel até as últimas consequências na história da Aliança com o homem, até a cruz, à morte e à ressurreição do seu Filho. A conversão a Deus é sempre fruto do retorno para junto deste Pai, “rico em misericórdia”.

A misericórdia autenticamente cristã é ainda, em certo sentido, a mais perfeita encarnação da “igualdade” entre os homens e, por conseguinte, também a encarnação mais perfeita da justiça, na medida em que esta, no seu campo, tem em vista o mesmo resultado. A “igualdade” dos homens mediante o amor “paciente e benigno” não elimina as diferenças.

A misericórdia torna-se, assim, elemento indispensável para dar forma às relações mútuas entre os homens, em espírito do mais profundo respeito por aquilo que é humano e pela fraternidade recíproca. É impossível conseguir que se estabeleça este vínculo entre os homens se se pretende regular as suas relações mútuas unicamente com a medida da justiça. O mundo dos homens só se tornará mais humano se introduzirmos no quadro multiforme das relações interpessoais e sociais, juntamente com a justiça, o “amor misericordioso” que constitui a mensagem messiânica do Evangelho.

O mundo dos homens só poderá tornar-se “cada vez mais humano” quando introduzirmos em todas as relações recíprocas, que formam a sua fisionomia moral, o momento do perdão, tão essencial no Evangelho. O perdão atesta que no mundo está presente o amor mais forte que o pecado. O perdão, além disso, é a condição fundamental da reconciliação, não só nas relações de Deus com o homem, mas também nas relações recíprocas dos homens entre si. Um mundo do qual se eliminasse o perdão seria apenas um mundo de justiça fria e irrespeitosa, em nome da qual cada um reivindicaria os próprios direitos em relação aos demais. Deste modo, as várias espécies de egoísmo, ocultas no homem, poderiam transformar a vida e a convivência humana num sistema de opressão dos mais fracos pelos mais fortes, ou até numa arena de luta permanente de uns contra os outros.

Em todas as fases da história, mas especialmente na época atual, a Igreja deve considerar como um dos seus principais deveres proclamar e introduzir na vida o mistério da misericórdia, revelado no mais alto grau em Jesus Cristo.


A ORAÇÃO DA IGREJA DOS NOSSOS TEMPOS


A Igreja proclama a verdade da misericórdia de Deus, revelada em Cristo crucificado e ressuscitado, e proclama-a de várias maneiras. Procura também praticar a misericórdia para com os homens por meio dos homens, como condição indispensável da sua solicitude por um mundo melhor e “mais humano”, hoje e amanhã.

Mas, além disso, em nenhum momento e em nenhum período da história, especialmente numa época tão crítica como a nossa, pode esquecer a oração que é um grito de súplica à misericórdia de Deus, perante as múltiplas formas do mal que pesam sobre a humanidade e a ameaçam. Tal é o direito e o dever da Igreja, em Cristo Jesus: direito e dever para com Deus e para com os homens. Quanto mais a consciência humana, vítima da secularização, esquecer o próprio significado da palavra “misericórdia”, e quanto mais, afastando-se de Deus, se afastar do mistério da misericórdia, tanto mais a Igreja tem o direito e o dever de apelar “com grande clamor” para o Deus da misericórdia. Este “grande clamor”, elevado até Deus para implorar a sua misericórdia, há de caracterizar a Igreja do nosso tempo. A mesma Igreja professa e proclama que a manifestação clara de tal misericórdia se verificou em Jesus crucificado e ressuscitado, isto é, no Mistério pascal. É este Mistério que contém em si a mais completa revelação da misericórdia, isto é, daquele amor que é mais forte do que a morte, mais poderoso do que o pecado e que todo o mal, do amor que ergue o homem das suas quedas, mesmo mais profundas, e o liberta das maiores ameaças.