RESUMO DA ENCÍCLICA CARITAS IN VERITATE
SOBRE O DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL NA CARIDADE E NA VERDADE
INTRODUÇÃO
A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira. O amor — “caritas” — é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz. É uma força que tem a sua origem em Deus, Amor eterno e Verdade absoluta. Defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida são formas exigentes e imprescindíveis de caridade. Esta, de fato, “rejubila com a verdade” (1 Cor 13, 6). Todos os homens sentem o impulso interior para amar de maneira autêntica: amor e verdade nunca desaparecem de todo neles, porque são a vocação colocada por Deus no coração e na mente de cada homem. Em Cristo, a caridade na verdade torna-se o Rosto da sua Pessoa, uma vocação a nós dirigida para amarmos os nossos irmãos na verdade do seu projeto. De fato, Ele mesmo é a Verdade (cf. Jo14, 6).
A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente.
No atual contexto social e cultural, em que aparece generalizada a tendência de relativizar a verdade, viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral. Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo.
Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a atividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalização que atravessa momentos difíceis como os atuais.
“Caritas in veritate” é um princípio à volta do qual gira a doutrina social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores da ação moral. Destes, desejo lembrar dois em particular, requeridos especialmente pelo compromisso em prol do desenvolvimento numa sociedade em vias de globalização: a justiça e o bem comum.
A caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é “meu”; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é “dele”, o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso “dar” ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles. A justiça não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é “inseparável da caridade”, é-lhe por natureza. A justiça é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, “a medida mínima” dela, parte integrante daquele amor “por ações e em verdade” (1 Jo 3, 18) a que nos exorta o apóstolo João. A caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão. A “cidade do homem” não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão.
Querer o bem comum e trabalhar por ele é exigência de justiça e de caridade. Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidades reais. Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem um valor superior à do empenho simplesmente secular e político.
O DESENVOLVIMENTO HUMANO NO NOSSO TEMPO
A caridade não exclui o saber, antes reclama-o, promove-o e anima-o a partir de dentro. O saber nunca é obra apenas da inteligência; pode, sem dúvida, ser reduzido a cálculo e a experiência, mas se quer ser sapiência capaz de orientar o homem à luz dos princípios primeiros e dos seus fins últimos, deve ser “temperado” com o “sal” da caridade. A ação é cega sem o saber, e este é estéril sem o amor. De fato, “aquele que está animado de verdadeira caridade é engenhoso em descobrir as causas da miséria, encontrar os meios de a combater e vencê-la resolutamente”. As exigências do amor não contradizem as da razão. O saber humano é insuficiente e as conclusões das ciências não poderão sozinhas indicar o caminho para o desenvolvimento integral do homem. Sempre é preciso lançar-se mais além: exige-o a caridade na verdade. Todavia, ir mais além nunca significa dispensar das conclusões da razão, nem contradizer os seus resultados. Não aparece a inteligência e depois o amor: há o amor rico de inteligência e a inteligência cheia de amor.
Isto significa que as ponderações morais e a pesquisa científica devem crescer juntas e que a caridade as deve animar num todo interdisciplinar harmônico, feito de unidade e distinção. A doutrina social da Igreja, que tem “uma importante dimensão interdisciplinar”, pode desempenhar, nesta perspectiva, uma função de extraordinária eficácia. Paulo VI tinha visto claramente que, entre as causas do subdesenvolvimento, conta-se uma carência de sabedoria, de reflexão, de pensamento capaz de realizar uma síntese orientadora, que requer “uma visão clara de todos os aspectos econômicos, sociais, culturais e espirituais”.
AMBIENTE
O tema do desenvolvimento aparece, hoje, estreitamente associado também com os deveres que nascem do relacionamento do homem com o ambiente natural. Este foi dado por Deus a todos, constituindo o seu uso uma responsabilidade que temos para com os pobres, as gerações futuras e a humanidade inteira. Quando a natureza, a começar pelo ser humano, é considerada como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo, a noção da referida responsabilidade debilita-se nas consciências. Na natureza, o crente reconhece o resultado maravilhoso da intervenção criadora de Deus, de que o homem se pode responsavelmente servir para satisfazer as suas legítimas exigências — materiais e imateriais — no respeito dos equilíbrios intrínsecos da própria criação. Se falta esta perspectiva, o homem acaba por considerar a natureza um tabu intocável ou, ao contrário, por abusar dela. Nem uma nem outra destas atitudes corresponde à visão cristã da natureza, fruto da criação de Deus.
A natureza é expressão de um desígnio de amor e de verdade. Precede-nos, tendo-nos sido dada por Deus como ambiente de vida. Fala-nos do Criador (cf. Rm 1, 20) e do seu amor pela humanidade. Está destinada, no fim dos tempos, a ser “instaurada” em Cristo. A natureza está à nossa disposição, não como “um monte de lixo espalhado ao acaso”, mas como um dom do Criador que traçou os seus ordenamentos intrínsecos dos quais o homem há de tirar as devidas orientações para a “guardar e cultivar” (Gn 2, 15). Mas é preciso sublinhar também que é contrário ao verdadeiro desenvolvimento considerar a natureza mais importante do que a própria pessoa humana. Esta posição induz a comportamentos neopagãos ou a um novo panteísmo: só da natureza, entendida em sentido puramente naturalista, não pode derivar a salvação para o homem. Por outro lado, há que rejeitar também a posição oposta, que visa a sua completa tecnicização, porque o ambiente natural não é apenas matéria de que dispor a nosso bel-prazer, mas obra admirável do Criador, contendo nela uma “gramática” que indica finalidades e critérios para uma utilização sapiente, não instrumental nem arbitrária. Advêm, hoje, muitos danos ao desenvolvimento precisamente destas concepções deformadas.
É lícito ao homem exercer um governo responsável sobre a natureza para a guardar, fazer frutificar e cultivar inclusive com formas novas e tecnologias avançadas, para que possa acolher e alimentar condignamente a população que a habita. Há espaço para todos nesta nossa terra: aqui a família humana inteira deve encontrar os recursos necessários para viver decorosamente, com a ajuda da própria natureza, dom de Deus aos seus filhos, e com o empenho do seu próprio trabalho e inventiva. Devemos, porém, sentir como gravíssimo o dever de entregar a terra às novas gerações num estado tal que também elas possam dignamente habitá-la e continuar a cultivá-la.
A Igreja sente o seu peso de responsabilidade pela criação e deve fazer valer esta responsabilidade também em público. Ao fazê-lo, não tem apenas de defender a terra, a água e o ar como dons da criação que pertencem a todos, mas deve sobretudo proteger o homem da destruição de si mesmo. Requer-se uma espécie de ecologia do homem, entendida no justo sentido. De fato, a degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana: quando a “ecologia humana” é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental.
A COLABORAÇÃO DA FAMÍLIA HUMANA
De natureza espiritual, a criatura humana realiza-se nas relações interpessoais: quanto mais as vive de forma autêntica, tanto mais amadurece a própria identidade pessoal. Não é isolando-se que o homem se valoriza a si mesmo, mas relacionando-se com os outros e com Deus, pelo que estas relações são de importância fundamental.
O tema do desenvolvimento coincide com o da inclusão relacional de todas as pessoas e de todos os povos na única comunidade da família humana, que se constrói na solidariedade tendo por base os valores fundamentais da justiça e da paz. Esta perspectiva encontra um decisivo esclarecimento na relação entre as Pessoas da Santíssima Trindade na única Substância divina. A Trindade é absoluta unidade, enquanto as três Pessoas divinas são pura relação. A transparência recíproca entre as Pessoas divinas é plena, e a ligação de uma com a outra é total, porque constituem uma unidade e unicidade absoluta. Deus quer-nos associar também a esta realidade de comunhão: “para que sejam um como Nós somos um” (Jo 17, 22). A Igreja é sinal e instrumento desta unidade.
A negação do direito de professar publicamente a própria religião e de fazer com que as verdades da fé moldem a vida pública, acarreta consequências negativas para o verdadeiro desenvolvimento. A exclusão da religião do campo público e, na vertente oposta, o fundamentalismo religioso impedem o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da humanidade. A vida pública torna-se pobre de motivações, e a política assume um rosto oprimente e agressivo. Os direitos humanos correm o risco de não ser respeitados, porque ficam privados do seu fundamento sublime ou porque não é reconhecida a liberdade pessoal.
CONCLUSÃO
Sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem é. Perante os enormes problemas do desenvolvimento dos povos que quase nos levam ao desânimo e à rendição, vem em nosso auxílio a palavra do Senhor Jesus Cristo que nos torna cientes deste dado fundamental: “Sem Mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5), e encoraja: “Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo” (Mt 28, 20). Diante da vastidão do trabalho a realizar, somos apoiados pela fé na presença de Deus junto daqueles que se unem em seu nome e trabalham pela justiça. Paulo VI recordou-nos, na Populorum progressio, que o homem não é capaz de gerir sozinho o próprio progresso, porque não pode por si mesmo fundar um verdadeiro humanismo. Somente se pensarmos que somos chamados, enquanto indivíduos e comunidade, a fazer parte da família de Deus como seus filhos, é que seremos capazes de produzir um novo pensamento e exprimir novas energias ao serviço de um verdadeiro humanismo integral. Por isso, a maior força ao serviço do desenvolvimento é um humanismo cristão que reavive a caridade e que se deixe guiar pela verdade, acolhendo uma e outra como dom permanente de Deus. A disponibilidade para Deus abre à disponibilidade para os irmãos e para uma vida entendida como tarefa solidária e jubilosa. Pelo contrário, a reclusão ideológica a Deus e o ateísmo da indiferença, que esquecem o Criador e correm o risco de esquecer também os valores humanos, contam-se hoje entre os maiores obstáculos ao desenvolvimento. O humanismo que exclui Deus é um humanismo desumano. Só um humanismo aberto ao Absoluto pode guiar-nos na promoção e realização de formas de vida social e civil preservando-nos do risco de cairmos prisioneiros das modas do momento. É a consciência do Amor indestrutível de Deus que nos sustenta no penoso e exaltante compromisso a favor da justiça, do desenvolvimento dos povos, por entre êxitos e fracassos, na busca incessante de ordenamentos retos para as realidades humanas. O amor de Deus chama-nos a sair daquilo que é limitado e não definitivo, dá-nos coragem de agir continuando a procurar o bem de todos, ainda que não se realize imediatamente e aquilo que conseguimos atuar seja sempre menos de quanto anelamos. Deus dá-nos a força de lutar e sofrer por amor do bem comum, porque Ele é o nosso Tudo, a nossa esperança maior.
O desenvolvimento tem necessidade de cristãos com os braços levantados para Deus em atitude de oração, cristãos movidos pela consciência de que o amor cheio de verdade — caritas in veritate –, do qual procede o desenvolvimento autêntico, não o produzimos nós, mas é nos dado. Por isso, inclusive nos momentos mais difíceis e complexos, além de reagir conscientemente devemos sobretudo referir-nos ao seu amor. O desenvolvimento implica atenção à vida espiritual, uma séria consideração das experiências de confiança em Deus, de fraternidade espiritual em Cristo, de entrega à providência e à misericórdia divina, de amor e de perdão, de renúncia a si mesmo, de acolhimento do próximo, de justiça e de paz. Tudo isto é indispensável para transformar os “corações de pedra” em “corações de carne” (Ez 36, 26), para tornar “divina” e consequentemente mais digna do homem a vida sobre a terra. A ânsia do cristão é que toda a família humana possa invocar a Deus como o “Pai nosso”. Juntamente com o Filho unigênito, possam todos os homens aprender a rezar ao Pai e a pedir lhe, com as palavras que o próprio Jesus nos ensinou, para o saber santificar vivendo segundo a sua vontade, e depois ter o pão necessário para cada dia, a compreensão e a generosidade com quem nos ofendeu, não ser postos à prova além das suas forças e ver-se livres do mal (cf. Mt 6, 9-13).