DIVINO AFFLANTE SPIRITU

 

PAPA PIO XII

RESUMO DA ENCÍCLICA DIVINO AFFLANTE SPIRITU

SOBRE OS ESTUDOS BÍBLICOS


INTRODUÇÃO


Inspirados pelo Espírito Divino, escreveram os sagrados autores aqueles livros que Deus, no seu paterno amor para com o gênero humano, se dignou dar-nos “para ensinar, para convencer, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e bem equipado para toda a obra boa.” Não admira, pois, se a santa Igreja, para quem este tesouro recebido do céu é fonte preciosíssima e regra divina do dogma e da moral, como o recebeu puro das mãos dos apóstolos, assim com todo o cuidado o conservou, e defendeu de toda e qualquer interpretação falsa e errônea, e com o maior esmero o utilizou para conseguir a salvação eterna das almas. Mas nos tempos mais recentes, quando se viu mais particularmente ameaçada a origem divina dos Livros Sagrados e a sua reta interpretação, também a Igreja tratou de as defender e proteger com maior empenho e diligência. Em nosso tempo o concílio Vaticano II, para condenar algumas falsas doutrinas relativas à inspiração, declarou que a razão de os mesmos livros deverem ser considerados como sagrados e canônicos “não é porque, tendo sido compostos apenas por atividade humana, a Igreja depois os aprovou com a sua autoridade, nem unicamente porque contêm a revelação sem erro algum, mas porque, escritos sob a inspiração do Espírito Santo, tem a Deus por autor, e como tais foram confiados à mesma Igreja.” Todavia, mesmo depois desta solene definição da doutrina católica que reivindica “aos livros inteiros com todas as suas partes” tal autoridade divina, que os preserva de todo e qualquer erro, houve escritores católicos que ousaram reduzir a verdade da Sagrada Escritura unicamente às coisas relativas à fé e a moral, considerando as restantes, quer físicas quer históricas, como “ditas de passagem” e sem conexão, afirmavam eles, com as verdades da fé. Por isso o nosso predecessor de imortal memória Leão XIII com a encíclica Providentissimus Deus, de 18 de novembro de 1893, infligiu àqueles erros a merecida condenação, e ao mesmo tempo regulou o estudo dos Livros divinos com prescrições e normas sapientíssimas.


CRITÉRIOS HERMENÊUTICOS PARA O ESTUDO DA SAGRADA ESCRITURA HOJE


Interpretação dos Livros santos


Os comentadores da Sagrada Escritura, tendo presente que se trata de um texto divinamente inspirado, cuja conservação e interpretação foram pelo mesmo Deus confiadas à Igreja, com não menor empenho, atenderão às explicações e declarações do magistério eclesiástico, bem como à exposição dos santos Padres e “à analogia da fé”, como nota sapientissimamente Leão XIII na Encíclica Providentissimus Deus.

Certamente que nem todo o sentido espiritual se pode excluir da Sagrada Escritura; pois que tudo o que foi dito e feito no Antigo Testamento, foi por Deus sapientissimamente ordenado e disposto de modo que as coisas passadas prefigurassem espiritualmente as futuras que deviam realizar-se no Novo Testamento da graça. Por isso o exegeta do mesmo modo como deve encontrar e expor o sentido literal das palavras que o hagiógrafo pretendia exprimir, assim também deve indagar o espiritual nos passos onde realmente conste que Deus o quis expressar. De fato, este sentido espiritual só Deus o pode conhecer e revelar. Ora, indica-o e ensina-o o próprio Salvador nos evangelhos; e, seguindo o exemplo do divino Mestre, usam-no os apóstolos falando e escrevendo; aponta-o a constante tradição da Igreja; e, finalmente, o conhecido princípio: “A lei de orar é a lei de crer”. Esse sentido espiritual por Deus pretendido e ordenado, descubram-no e exponham-no os exegetas católicos com o zelo que requer a dignidade da divina palavra; guardem-se, porém, escrupulosamente de apresentar como sentido genuíno da Sagrada Escritura outros valores figurativos das coisas.

Pode sim ser útil, especialmente na pregação, ilustrar e persuadir as coisas da fé e da moral cristã com uso mais largo do sagrado texto em sentido figurado, contanto que se faça com moderação e sobriedade; mas é preciso não esquecer que tal uso da Sagrada Escritura lhe é como que extrínseco e adicional, e não deixa de ser perigoso; sobretudo em nossos dias, porque os fiéis, e nomeadamente as pessoas cultas nas ciências sagradas ou profanas, querem saber o que Deus disse nas Sagradas Escrituras, e não tanto o que um fecundo orador ou escritor usando com destreza as palavras da Bíblia, é capaz de nos dizer. “A palavra de Deus é viva, eficaz e mais cortante que uma espada de dois gumes, penetrante até dividir alma e espírito, articulações e medulas, capaz de destrinçar pensamentos e sentimentos do coração” não precisa de artifícios e adaptações humanas para mover e abalar os corações; as Sagradas Páginas escritas sob a inspiração do Espírito de Deus são de per si ricas de sentido próprio; dotadas de força divina, são poderosas por si mesmas; ornadas de supremo esplendor por si mesmas brilham e resplandecem, se o intérprete com uma explicação fiel e completa sabe desentranhar todos os tesouros de sabedoria e prudência que nelas estão encerrados.

Para isso conseguir poderá o exegeta católico auxiliar-se nobremente do estudo inteligente dos escritos em que os santos Padres e doutores da Igreja e os ilustres intérpretes das épocas passadas comentaram os Livros Santos. Pois que eles, bem que talvez menos fornecidos de instrução profana e de ciência linguística do que os intérpretes dos nossos dias, contudo pelo lugar que Deus lhes deu na Igreja, distinguem-se por uma suave intuição das coisas celestes e por uma admirável perspicácia com que penetram até as mais íntimas profundidades da divina palavra e tiram à luz quanto pode servir para ilustrar a doutrina de Cristo e promover a santidade da vida.


Tarefa especial dos exegetas em nossos dias


Para citar um só exemplo, quando alguns presumem acusar os autores sagrados de erro histórico ou de inexatidão em referir certos fatos, examinando bem vê-se que se trata simplesmente de modos de falar ou narrar próprios dos antigos, correntemente usados para trocar ideias e que realmente se aceitavam como lícitos no trato ordinário. Quando, por conseguinte, tais modos de falar se encontram na divina palavra, que se exprime em linguagem humana para os homens, pede a justiça que não sejam tachados de erro mais do que quando empregados no uso cotidiano. Conhecendo, pois, e avaliando devidamente os modos e arte de falar e escrever dos antigos poderão resolver-se muitas objeções que se fazem contra a verdade e valor histórico das divinas Escrituras; além de que esse estudo ajudará muito a uma mais completa e luminosa compreensão do pensamento do Autor sagrado.


Jesus Cristo, salvador da humanidade, centro da Escritura


Deste autor da salvação, Cristo, tanto será nos homens mais perfeito o conhecimento, tanto mais intenso o amor, tanto mais fiel a imitação, quanto maior for o entusiasmo com que se deem ao conhecimento e à meditação das Sagradas Escrituras, especialmente do Novo Testamento. Pois como diz o Estridonense: “a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo”; e “se há coisa neste mundo que sustenha o sábio e o convença a permanecer de ânimo sereno em meio das tribulações e tempestades do mundo, penso que é em primeiro lugar a meditação e ciência das Escrituras”. Delas os cansados e acabrunhados haurirão verdadeiras consolações e força divina para sofrer e suportar com paciência as adversidades e desventuras; delas, dos santos Evangelhos, a todos se mostra Cristo sumo e perfeito exemplar de justiça, de caridade e de misericórdia.